Neca: “Temi pela vida. O motorista mascava droga para se manter acordado”

Neca: “Temi pela vida. O motorista mascava droga para se manter acordado”

Entrevistas

Neca: “Temi pela vida. O motorista mascava droga para se manter acordado”

Nesta entrevista, o professor Neca passa em revista os momentos mais relevantes e inusitados da sua carreira de 38 anos.

Artigo de André Cruz Martins

10-08-2018

Depois de uma modesta carreira como jogador, iniciou-se como treinador com apenas 29 anos, ao serviço do Grupo Desportivo do Prado, do terceiro escalão. Estávamos em 1980 e Manuel Gonçalves Gomes estava longe de imaginar duas coisas: que iria passar a ser conhecido como professor Neca e que 38 anos depois ainda estaria no futebol, sendo o mais experiente dos treinadores dos 18 clubes que se preparam para disputar a I Liga, integrando a equipa técnica de Lito Vidigal no V: Setúbal.

Nesta entrevista, o professor Neca explica-nos qual a sua função, que ultrapassa em muito a de mero adjunto e mostra-se confiante numa boa época dos sadinos. Como não poderia deixar de ser, grande parte da nossa conversa com este homem de grande educação, boa disposição e que é um poço de cultura, passa em revista episódios marcantes da sua carreira, que teve seis passagens pelo Desportivo das Aves e experiências inesquecíveis em países como Angola, Maldivas, Índia, entre outros países. Muito ficou por dizer, mas isso daria para um livro. Ou até vários livros.

Iniciou-se como treinador em 1980, ao serviço do Grupo Desportivo do Prado. Tinha apenas 29 anos, por que razão decidiu tornar-se treinador tão novo?
Acabei de jogar aos 29 anos porque percebi que não iria chegar mais longe na minha carreira de futebolista. Curiosamente, terminei como futebolista no ponto mais alto da história do Prado, quando o clube estava no segundo escalão. Ainda nessa época, acumulo o cargo de jogador com o de preparador físico. O ter-me tornado treinador na época seguinte foi um acaso, nunca tinha pensado nisso. Recebi um convite dos responsáveis do clube e decidi aceitar. Na altura, o Prado tinha descido ao terceiro escalão. Ou seja, nasci como treinador em 1980 e aqui me mantenho com o mesmo entusiasmo.

Quando chegou pela primeira vez ao primeiro escalão do futebol português?
Foi ao serviço do Desportivo das Aves, em 1985/86. Essa foi a primeira de seis passagens que tive pelo clube. Em 1989/90, voltei à I Divisão, ao serviço do Tirsense, depois de ter conseguido a subida. Aliás, tenho quatro subidas à primeira divisão e sou um dos treinadores que mais vezes o conseguiu em Portugal. Foram três subidas ao serviço do Desportivo das Aves e uma pelo Tirsense. Curiosamente, sempre ao serviço de clubes do concelho de Santo Tirso, pois continuava a ser professor de Educação Física e não me convinha sair da zona. Continuei a ser professor atè à época de 1991/92, quando tirei licença sem vencimento.

“Não é verdade que Artur Jorge tenha destruído a equipa do Benfica”

Em 1994/95 e 1995/96 foi adjunto de Artur Jorge no Benfica. Como recorda a passagem pela Luz?
O Sport LIsboa e Benfica é uma instituição cuja dimensão só é entendida por quem lá passa. Chego ao Benfica depois de ter sido treinador do Sp. Braga e aceitei o convite do Artur Jorge, que naqueles anos estava para Portugal como hoje em dia está o José Mourinho. Foi o primeiro treinador português campeão europeu [ao serviço do FC Porto] e o primeiro treinador português campeão nacional no estrangeiro [pelo PSG], por isso para mim foi um privilégio aceitar ser pela primeira vez adjunto. Ainda nesta equipa técnica do Benfica, quero realçar o importantíssimo papel desempenhado pelo capitão Mário Wilson, uma figura incontornável do Benfica e do futebol português.

Muitas pessoas defendem que Artur Jorge destruiu a equipa do Benfica que tinha sido campeã nacional em 1993/94, treinada por Toni. Foi mesmo assim, na sua opinião?
Não é verdade e lamento que Portugal ainda não tenha feito a este homem a homenagem que ele merecia. O futebol vive de resultados e nessa altura o Benfica não conseguiu resultados. Foi apenas isso que aconteceu. Por outro lado, o Benfica precisava de uma transformação em termos estruturais, para combater um FC Porto que dominava todas as áreas do futebol. Era um domínio absoluto que era exercido por esse clube e, reforço, em todas as áreas. E o Benfica precisava de se atualizar urgentemente. Não foi isso que aconteceu e acabaria por bater no fundo com a chegada de João Vale e Azevedo, alguém que fez muito mal ao clube. O Benfica só conseguiu levantar-se com Luís Filipe Vieira, que conseguiu transformar todo o futebol do clube, numa primeira instância com o contributo importantíssimo de Manuel Vilarinho. Mais tarde, o Benfica começou a entrar na rota do Seixal, hoje em dia indiscutivelmente a melhor escola de formação em Portugal e possivelmente a melhor do mundo.

Depois do Benfica, viveu a sua primeira experiência no estrangeiro entre 1997 e 1998, como selecionador de Angola. Como correu?
Em primeiro lugar, quero destacar que foi a minha experiência no Benfica, com Artur Jorge e Mário Wilson, que me alavancou para esta experiência em Angola. Aliás, fui para Angola muito influenciado pelo capitão Mário Wilson, que me disse que ser selecionador de Angola seria uma experiência ímpar. E assim foi.

“Seguimos num avião de carga, sentados em grades de cerveja”

Qual foi a primeira reação quando chegou a Luanda?
Tive um choque, porque estávamos em plena guerra entre o MPLA e a UNITA e a sociedade estava fraturada. O primeiro momento foi de rejeição, mas depois comecei a conversar com as pessoas e apaixonei-me por aquele país. Era impressionante o conhecimento que os angolanos tinham de Portugal e de mim próprio. No fundo, era estar como em Portugal, num país muito carenciado mas com um enorme potencial humano.

Tem alguma história curiosa que nos queira contar dessa experiência angolana?
Posso falar da nossa primeira viagem internacional, para o Uganda. Era um jogo a eliminar e quem ganhasse iria disputar a fase de qualificação para o Mundial de 1998, em França. Deparei-me logo com um “caso Saltillo”, com muitas queixas dos jogadores, devido aos salários que tinham em atraso e a outros problemas. Lá consegui resolver isso com a ajuda da experiência que adquiri no Benfica e seguimos viagem para o Uganda. No entanto, os problemas continuaram, pois seguimos num avião de carga, sentados em cima de grades de cerveja e sem cintos de segurança. Era um avião que servia para transportar os canhões para a guerra. Fui toda a viagem com um medo brutal, até porque estive na Força Aérea e por isso estava ainda mais consciente do perigo que corríamos. Ainda por cima, a viagem era para durar duas horas e meia e durou quatro horas e meia.

A que razão se deveu a maior duração da viagem?
O avião não pediu autorização para sobrevoar o Congo, que estava em guerra. Para sair da zona do conflito, o piloto fez um desvio e depois andou perdido pelos ares. Felizmente, nada nos aconteceu e ainda ganhámos, com um golo do Quinzinho, ponta de lança que jogou no FC Porto.

“Planificação para o Mundial de 2002 não foi a desejável”

Fez parte da equipa técnica da seleção nacional no Campeonato do Mundo da Coreia do Sul/Japão, em 2002, liderada por António Oliveira. No seu entender, foram justas as críticas feitas em relação ao mau planeamento e outras situações que terão ocorrido fora do campo?
Em 1986 tivemos o Mundial do México, que trouxe o 25 de Abril ao futebol português, devido ao choque entre o profissionalismo que já existia nos clubes e o amadorismo conservador da FPF e das Associações de Futebol. Estivemos 16 anos sem estar presentes num Mundial e regressámos precisamente em 2002, numa prova realizada num continente com grandes diferenças em relação à Europa. O planeamento foi feito por uma estrutura profissional, mas que não tem nada a ver com a magnífica estrutura da atual FPF, liderada por Fernando Gomes e que tem profissionais com passado no futebol. Resumindo, em 2002 a planificação não foi a desejável e, depois, para complicar, a bola não entrou. Tivemos tudo para vencer a Coreia no último jogo da fase de grupos, quando o empate bastava-nos para seguir em frente.

Foi fatal os jogadores não serem informados de que as coisas corriam de feição no outro jogo? Se os jogadores soubessem que o empate bastava, concorda que muito possivelmente João Pinto não tinha dado aquele murro no árbitro?
No futebol acha-se sempre que as coisas deveriam ter sido feitas de maneira diferente.Mas só a partir desse Mundial de 2002 é que Portugal passou a estar presente de forma consecutiva em Campeonatos da Europa e do Mundo. Na Coreia estávamos no nosso terceiro Mundial, havia atritos e areias que dificultavam a comunicação e quando a comunicação era feita, muitas vezes chegava distorcida ou com ruído. E quando falo em comunicação, não me estou a referir apenas à comunicação dentro do campo, mas também entre os elementos da equipa técnica e os dirigentes. Tínhamos grande falta de traquejo nas relações sociais.

“Fui a concurso com mais de 60 treinadores”

Depois de ter sido treinador-adjunto de Portugal, foi selecionador das Maldivas. Como surgiu essa hipótese?
Fui a concurso com mais de 60 treinadores e consegui ser o eleito. Tinha pouco conhecimento sobre o país, mas com uma grande vontade de ter sucesso. Levei algum material desportivo de treino, como cones, coletes, etc, pois não sabia o que iria encontrar. A realidade é que quando chego às Maldivas, deparo-me com um país lindíssimo e muito bem organizado em termos desportivos, embora tudo com uma grande simplicidade. E fiquei surpreedido com a dimensão que o futebol português tinha para os locais e que se devia principalmente aos feitos de Eusébio no Campeonato do Mundo de 1966, mas também por causa do Figo, Rui Costa, Fernando Couto e outros jogadores que na altura davam cartas.

E tal como em Angola, entrou logo com um jogo decisivo.
Sim, íamos defrontar a Mongólia e quem ganhasse iria disputar a fase de apuramento para o Mundial de 2006. Conseguimos ganhar fora de casa na primeira mão e esse foi o primeiro triunfo das Maldivas fora, em toda a história. Ainda por cima, obtido em condições extremamente adversas, pois jogámos com uma temperatura de 20 graus negativos e os jogadores estavam habituados a uma temperatura entre os 27 e os 35 graus nas Maldivas. Estamos a falar de uma diferença entre 50 a 60 graus. Depois, na segunda mão, a Mongólia veio jogar às Maldivas e decidi tentar perceber como eles estavam a preparar o jogo. Via-os todos contentes, fascinados com a beleza do país, com as águas quentes e pensei “isto vai correr bem, deixa-os ir a banhos e desfrutar disto”. E assim foi, ganhámos por 12-0 e esse resultado ainda hoje é recordado como um marco no futebol do país.

Continuou quanto tempo nas Maldivas?
Fiz um contrato para um segundo ano, mas no Natal, quando vim a Portugal, aconteceu aquele horrível tsunami que afetou grande parte da Ásia e que destruiu muitas infraestruturas nas Maldivas. Acabei por não voltar para as Maldivas e o Desportivo das Aves convenceu-me a regressar ao clube.

“O motorista mascava droga para se manter acordado”

De todos os países onde viveu, onde encontrou maiores diferenças culturais?
Possivelmente na Arábia Saudita, o país mais conservador do mundo muçulmano. Como se sabe, a Meca e a Medina, os dois maiores símbolos do mundo muçulmano, encontram-se neste país, Fiquei chocado com algumas coisas, nomeadamente o facto de uma mulher não poder conduzir um carro ou não poder ir a um estádio assistir a um jogo de futebol. Ou então uma mulher bonita ter de estar constantemente tapada, só se vendo os seus olhos. Respeitava, mas sem dúvida que foi um grande choque cultural para mim.
Posso também referir a Índia, um país de contrastes. Felizmente tive a sorte de estar no Churchill Brothers, na “nossa” Goa, que preserva a influência portuguesa. De todos os países onde estive, a Índia é onde a arquitetura é mais parecida com a portuguesa, muito mais do que Londres ou Maputo.

Quer dar-nos alguns exemplos desses contrastes na Índia?
Lá tínhamos de viajar sempre de avião para os jogos, pois viagens de 150 km nas estradas duravam cerca de seis horas. Ainda hoje me recordo de uma viagem de noite em que temi pela vida. O motorista era completamente louco e percebi que mascava droga para se manter acordado. Era uma estrada cheia de buracos e ele fazia ultrapassagens loucas. Temi pela minha vida. Curiosamente, apesar das grandes assimetrias que existem na Índia, onde existem os maiores palácios, mas também a pobreza mais chocante, a sociedade funciona na perfeição. Isso acontece porque algumas etnias aceitam a sua inferioridade. Era chocante vermos pessoas que sobreviviam em qualquer lado, à espera da morte.
Voltando ao trânsito, é uma autêntica balbúrdia e há toques permanentes entre os veículos. No entanto, se ninguém se magoa, siga. E há uma autêntica sinfonia de apitos a toda a hora. A buzina é uma forma de anunciar a presença, é mais importante do que o pisca para fazer uma ultrapassagem. Isto para além de haver uma poluição tremenda.

Que balanço faz depois de passar por tantos países diferentes?
Estou muito grato por tudo o que o futebol me proporcionou. Tudo o que a vida me deu foi graças ao futebol e felizmente sempre tive o bom senso para continuar a estudar e continuar a ter acesso ao conhecimento.

“Em 2014 decidi que não voltaria a ser treinador principal”

Como é que alguém com o seu curriculum decidiu tornar-se treinador-adjunto em 2014?
Em 2014 decidi que não voltaria a ser treinador principal. Na minha opinião, tem de haver um espaço nas equipas técnicas para um treinador mais experiente, que seja um apoio incondicional na formação do treinador principal e um elo de contacto com os jogadores, dirigentes e equipa médica, de forma a que o técnico principal não se disperse.

Acredita que outros treinadores experientes irão seguir o seu exemplo?
Espero que sim, pois o futuro será cada vez mais feito de equipas técnicas multidisciplinares, sob a coordenação de um treinador principal, em que o treinador mais experiente tem grande importância.

Está com Lito Vidigal desde 2015/16, primeiro no Arouca, depois no Maccabi Tel Aviv, Desportivo das Aves e, esta temporada, V. Setúbal. Até onde pensa que ele pode chegar?
O Lito é um treinador que tem todas as condições para chegar a patamares muito altos. Está a construir uma carreira ascensional e percebe do jogo, do treino e tem uma liderança forte.

Quais as suas expetativas para esta época, ao serviço do V. Setúbal?
Sinto-me como se estivesse a começar a carreira. O Lito Vidigal convidou-me e eu aceitei com todo o gosto. Existe uma curiosidade: o Hélio, atual selecionador nacional de sub-19, foi meu jogador e agora o seu filho, o André Sousa, integra o plantel do V. Setúbal. É um jogador com grande qualidade. O Artur Jorge, filho do Artur Jorge que treinei no Sp. Braga, também está no plantel. O V. Setúbal é um grande clube, que está numa grande cidade, que respira futebol. A nossa intenção é ajudarmos na recuperação deste grande clube e estamos confiantes de que iremos realizar uma época muito positiva. Há uma valência de competências e vontades que vai levar a que o Vitória tenha uma época muito feliz.

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Artigo de
André Cruz Martins

10-08-2018



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