Fernando Mendes, nascido numa família de sportinguistas e ele próprio um fervoroso adepto dos leões, foi formado no clube de Alvalade, que representou durante nove temporadas, quatro das quais nos seniores, tendo conseguido ganhar apenas um troféu e o de menor importância (a Supertaça Cândido de Oliveira).
Surpreendeu ao mudar-se para o grande rival Benfica, numa altura em que tinha oito meses de salários em atraso, mas confessa que o período que passou na Luz foi de longe o pior da carreira. Foi bem mais feliz nos três anos em que esteve no FC Porto, tendo sido sempre campeão nacional. Passou ainda com grande sucesso por Boavista e Belenenses e, de resto, é o único futebolista na história que representou os cinco campeões nacionais portugueses.
Nesta entrevista, não esconde que sempre foi um bom rebelde, mas assegura que nunca deixou de ser 100 por cento profissional. Atualmente, é comentador num canal televisivo e confessa que não morre de amores por André Ventura, que costumava ser seu colega de painel.
Começou por jogar no Montijo, o clube da sua terra, mas em 1980 chegou ao Sporting. Como se processou a ida para o clube leonino?
Ir para o Sporting foi o concretizar de um sonho, pois eu e toda a minha família éramos adeptos do clube. Eu jogava numa equipa treinada pelo pai do Futre e costumávamos participar naqueles torneios locais. Tive a felicidade de ter sido observado por um olheiro do Sporting, apareceu a oportunidade de ir para lá, mas ainda fiquei mais um ano no Montijo. Cheguei ao Sporting no início do meu segundo ano no escalão de Iniciados.
Como foram os primeiros tempos no Sporting? Teve dificuldades em adaptar-se a uma realidade completamente diferente?
Não foi fácil. Saía da escola, tinha de apanhar o barco das 15h30 para Lisboa, depois chegava ao Terreiro do Paço e ia de metro até Entrecampos. E depois, ia a correr para o Estádio José Alvalade, para conseguir chegar a tempo do treino. O que me valia era que havia vários jogadores da Margem Sul que jogavam no Sporting e encontrávamo-nos todos no Terreiro do Paço. Mas esta realidade nada tem a ver com a dos atuais centros de estágio dos clubes grandes. Por um lado é bom, porque hoje em dia os miúdos têm todas as condições, mas por outro lado é mau, porque ficam habituados a ter tudo e perde-se a irreverência do jogador de rua.
“Pensaram que eu tinha atirado a braçadeira ao chão”
Ainda se lembra como foi a sua subida à equipa principal do Sporting?
Perfeitamente. Curiosamente, foi numa altura em que estava suspenso da equipa de juniores, pois os responsáveis pensaram que eu tinha atirado a braçadeira ao chão no momento em que foi substituído durante um jogo. O que por acaso não é verdade, pois a braçadeira simplesmente caiu no momento em que eu a entreguei ao meu colega. Eu não podia treinar pelos juniores e como vivia ao lado do Estádio José Alvalade, por vezes ia assistir aos treinos da equipa principal. O Romeu, que era defesa esquerdo, lesionou-se num treino, eu fui chamado pelo treinador John Toschack e nunca mais saí do grupo, embora continuasse a alinhar pelos juniores ao fim de semana.
Ainda se recorda qual foi o adversário na sua estreia na equipa principal?
Perfeitamente. Foi com o V. Setúbal, na última jornada do campeonato da época de 1984/85. Joguei os últimos 20, 25 minutos, mas curiosamente o treinador era o Manuel Pedro Gomes, pois o Toshack tinha saído algumas semanas antes. Já tínhamos a classificação definida, o segundo lugar, depois de termos ganho na jornada anterior no Estádio da Luz, roubando o título ao Benfica. Tive a sorte de ser muito bem recebido no plantel, por grandes figuras do Sporting como Manuel Fernandes, Damas, Sousa e Jaime Pacheco. Aprendi muito com eles e fui muito acarinhado.
Uma Supertaça portuguesa foi o seu único título em quatro épocas no plantel principal do Sporting. Claramente pouco, não?
E ainda um título de campeão nacional de juvenis. Foi muito pouco, claro, mas o Sporting vivia um período de grande instabilidade, um pouco à semelhança do que tem acontecido nos últimos meses. Sempre tivemos excelentes jogadores e grandes equipas, mas havia sempre algo a atrapalhar e que levava a que as coisas não corressem bem. Por outro lado, esse período coincidiu com o aparecimento do grande FC Porto, que até foi campeão europeu, em 1987.
“O Jorge Gonçalves pediu 1 milhão de contos ao Barça pelo meu passe”
O seu melhor jogo pelo Sporting foi mesmo aquele numa célebre vitória por 2-1 com o Barcelona, em 1986/87?
Acho que sim. Fiz as assistências para os golos e tive nos pés a hipótese de fazer o 3-0, mas quis fazer um chapéu ao Zubizarreta, em vez de passar a bola a um colega melhor colocado. Acabámos eliminados, pois o Barcelona reduziu para 2-1 quase a acabar, depois de ter ganho 1-0 em Espanha.
É verdade que o FC Barcelona o quis contratar?
Sim, mas o presidente Jorge Gonçalves pediu um milhão de contos [5 milhões de euros] pelo meu passe. Claro que eles não aceitaram, bastando dizer que poucos anos antes eles tinham pago esse valor ao Boca Juniors para contratar o Maradona.
“Ao fim de dois dias já estava arrependido de ter ido para o Benfica”
Em 1989/90, acabou por surpreender ao mudar-se para o Benfica.
Foi uma opção. O Sporting vivia um período de grande instabilidade e os jogadores chegaram a ter oito meses de salários em atraso. Queria progredir na carreira e respondi afirmativamente ao convite do Benfica. No entanto, se soubesse o que sei hoje nunca teria ido para o Benfica.
Por que diz isso?
O Benfica foi buscar-me única e exclusivamente para “fazer pirraça” ao Sporting. Para defesa esquerdo eles tinham o Álvaro, o Fonseca e o Schwarz e eu fui contratação do presidente e não do treinador. Aliás, posso dizer que nunca tive qualquer relação com o Eriksson [o técnico do Benfica na altura] durante o tempo em que lá estive. Bem, às vezes isso acontece, nem sempre os treinadores gostam de determinado jogador e vice-versa. A verdade é que ao fim de dois dias eu já estava arrependido de ter ido para o Benfica.
Conte-nos lá aquela célebre história em que ia atirar tiros com pressão de ar para o Estádio da Luz.
Havia muitos pássaros no relvado do Estádio da Luz, devido ao adubo. Eu chegava mais cedo do que a hora prevista para o início do treino. Ia com o Zé Luís, o roupeiro, atirar tiros aos pássaros. Ainda mandei uma ou duas chumbadas que bateram na porta do gabinete do Eriksson.
Conviveu com os três russos do Benfica, Mostovoi, Kulkov e Iuran. Eles eram tão malucos como se dizia?
Não, nada disso. Tinham o feitio deles, bastante diferente do nosso, mas não eram malucos. Aliás, sempre me dei bem com os três e especialmente com o Mostovoi. Claro que o Iuran era bastante efusivo e rebelde, mas não creio que quisesse criar problemas.
“De facto, aquela equipa do Benfica era foleira”
Por falar em rebeldia, o próprio Fernando Mendes tinha essa imagem colada a si. De forma justa? É verdade que gostava de sair à noite?
Eu saía à noite, mas de forma responsável, quando podia sair sem que isso afetasse o meu rendimento. De uma coisa tenho a certeza: não há um único treinador que se possa queixar de que eu não trabalhasse. E também não acredito que haja um único companheiro que se queixe de que eu era mau colega.
Em 1999 marcou um golo numa vitória do Belenenses no Estádio da Luz. No final, disse à rádio que tinham ganho “a uma equipa nojenta”. Porquê?
Corrijo: a expressão foi “equipa foleira” e não “equipa nojenta”. Porque de facto, aquela equipa do Benfica era foleira [risos]. Ficou toda a gente muito ofendida, mas apenas expressei o sentimento de muitos benfiquistas, que achavam que grande parte daqueles jogadores não tinham qualidade para jogar num clube tão grande como o Benfica.
A sua passagem pelo Benfica não correu nada bem. Pelo contrário, foi muito feliz no FC Porto, que representou entre 1996 e 1999.
Foi uma altura fantástica da minha carreira. Em três anos, fui tricampeão e também ganhei Taças de Portugal e Supertaças. Quando saí do Sporting devia ter ido para o FC Porto, em vez de ter ido para o Benfica. Era tudo fantástico naquele FC Porto: a equipa, a estrutura, o presidente. Cheguei lá já com 29 anos e integrei-me muito facilmente, até porque o espírito do FC Porto tinha tudo a ver com o meu, de não gostar de perder nem a feijões e de correr em campo até morrer.
Foi o único jogador que até hoje passou pelos cinco clubes campeões nacionais de Portugal: FC Porto, Benfica, Sporting, Boavista e Belenenses. Certamente algo que o deixa orgulhoso.
Sou o único e não acredita que algum dia haja alguém que o consiga. Claro que fico muito orgulhoso. É sinal de que tinha algum valor. Evidentemente que gostaria de ter passado mais tempo no mesmo clube, de ter tido mais estabilidade, mas não foi possível.
“André Ventura? Não tenho nem quero vir a ter confiança com ele”
Atualmente é comentador da CMTV. Gosta deste seu trabalho?
Bastante. Agrada-me ter o papel de defender o Sporting, o meu clube. Ainda que seja complicado defender um clube que vive em guerra permanente. E aliás, sempre que achar que devo criticar o Sporting continuarei a fazê-lo. Mas posso dizer com muito orgulho que nunca escondi que sou do Sporting. Aliás, essa foi uma das razões para não ter tido sucesso no Benfica, pois isso não era bem visto lá dentro. Já no FC Porto, ninguém se importava que eu mal acabasse os jogos fosse a correr para o meu carro ouvir o relato dos jogos do Sporting. Eu dava 100 por cento nos treinos e nos jogos e eles reconheciam isso.
Já teve muitos momentos de grande tensão com alguns dos seus colegas de painel, nomeadamente com André Ventura, o representante afeto ao Benfica. Fica tudo ultrapassado mal o programa termina? Tem relação com André Ventura?
Não é por ser meu colega de programa que tenho de ter relação com ele. Respeito as opiniões dele, mas há ocasiões em que não concordo com nada do que ele diz. Aliás, não tenho confiança com ele nem quero vir a ter.
Numa ocasião, André Ventura ameaçou-o mesmo de pancada. Como viveu essa inusitada situação?
Ele disse que me ia bater (risos). Enfim, são coisas que se dizem no calor da discussão.
“Bruno de Carvalho só dá tiros nos pés e faz figuras tristes”
Como vê o atual momento do Sporting? Sente que o clube pode dar uma boa resposta depois dos últimos meses de enorme turbulência?
É nestas alturas difíceis que se vêem as grandes equipas. Nos últimos tempos tive a infelicidade de assistir a coisas que nunca pensei serem possíveis no meu clube. E para além de assistir a tudo com enorme tristeza, ainda tive de fazer comentários sobre todas as polémicas, o que me custou imenso. Acredito que o Sporting vai conseguir dar a volta já esta época, demonstrando mais uma vez que se trata de um dos melhores clubes do mundo.
Que comentário lhe merece as ações que têm sido protagonizadas por Bruno de Carvalho nos últimos tempos, atendendo a que foi um grande apoiante do ex-presidente do Sporting?
Bruno de Carvalho quer é protagonismo, ele gosta é de aparecer nas televisões e nos jornais. Ele merece todas as críticas que lhe têm sido feitas e o facto de estar praticamente sozinho, mas até determinado momento ele próprio não merecia isto, devido ao excelente trabalho que realizou numa fase inicial no Sporting. Merecia ter saído com dignidade, mas infelizmente esse não foi o seu próprio desejo. Só dá tiros nos pés e faz figuras tristes. Sinceramente não sei o que ele e os seus seguidores pretendem. Mas atenção, é ele que faz figuras tristes e não o Sporting, pois ele já não pertence ao Sporting.